Por Sandra Perruci *
"Às vezes preciso dar uns 'tiros" (cheirar cocaína) para poder fazer programa, porque tenho nojo. E ainda tem homem que quer transar e não quer pagar. Se a gente reclama, ele bate na gente. Por isso, a gente precisa de patrão (cafetão). Ele protege, mas tenho de trabalhar para dividir o dinheiro (R$ 50 por programa)", contou L., de 15 anos, ao jornalista Luciano Ribeiro, em reportagem publicada na Folha de São Paulo dia 22 de maio.
A pauta seguiu o mesmo caminho de reportagem publicada pelo jornal Diário do Litoral há algumas semanas, que mostra a tragédia da zona central da cidade de Santos e sua área portuária, com adolescentes vivendo a rotina das drogas e prostituição.
Parece que já estou ouvindo as vozes dizendo "ah, isso sempre foi assim". É de tremer ouvir as histórias de muitas jovens, mas é de doer ouvir declarações que mostram uma cidade padrão de qualidade de vida no Brasil que não ouve, que não vê e que não fala desse tema indigesto.
Há alguns anos trabalhei em um projeto sobre o Sistema de Garantia de Direitos - SGD. Comecei a tomar consciência da fragilidade de uma rede que se estrutura em lei, em papel, mas que não consegue se mover. Entrevistei durante três anos especialistas, técnicos ligados à área de defesa dos direitos da criança e da adolescência sobre variados temas. Escrevi sobre evasão escolar, exploração sexual, ausência de políticas públicas integradas e projetos midiáticos, que vêm e vão sem ninguém nunca saber pra quê existiram.
A imprensa continuará produzindo material farto sobre o abandono de crianças e jovens. E a sociedade vai continuar criticando duramente o ECA, os "bandidinhos", os "moleques safados", as "meninas que buscam confusão". Há discurso de sobra para ambos os lados.
Então, qual o caminho? Fechar os olhos?
O que fazer com a escola no morro, por exemplo, onde professores e direção se rendem, muitas vezes, ao tráfico para poder "administrar" o ensino. O que fazer quando se precisa registrar um caso suspeito de abuso e se pensa na "confusão em que vou me meter".
O SGD nasceu em 2006 para integrar um conjunto de atores, instrumentos e espaços institucionais formais e informais com papéis e atribuições específicas e definidas no ECA. Ele seria uma evolução, organizando o trabalho da rede de atendimento. Surgiu como uma luz, mas que não iluminou até agora. Sua nomenclatura sequer é reconhecida e adotada.
E, assim, a rede que envolve Executivo, conselhos, organizações não-governamentais e Judiciário estabelece até uma agenda de eventos, mas parece um rinoceronte que vive e se movimenta dentro de um kitchenette. Técnicos que atuam no segmento agonizam em meio ao caos.
Programas são implantados como grande novidade e depois naufragam diante da burocracia, falta de investimento, comprometimento e equipe de profissionais especializada. Os programas não deveriam ser criados para conquistar prêmios, mas para resgatar crianças.
Infelizmente os municípios adoram produzir dados e estatísticas sobre a triste situação da infância e adolescência, mas têm medo de mexer pra valer em uma área difícil. Evitam dialogar, abrindo suas próprias deficiências e fragilidades, e dividir decisões.
Santos e toda a região metropolitana em que está inserida precisam parar de olhar um pouco para o mar das pranchas de surfe e enxergar o que acontece próximo ao mar do cais. A tão sonhada rede de atores, com papéis definidos, investimentos reais para movimentar as ações, precisa existir e salvar uma geração. Enquanto o SGD continuar a ser apenas uma nomenclatura fracassada, vamos contribuir para histórias tão dramáticas quanto a de L. de 15 anos.
* Sandra Perruci é jornalista, coordenadora de Comunicação da Prossiga e parceira da Lêda
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