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FATOS & IDEIAS

Para Promotora de Justiça, falta de recursos e de vontade política prejudicam implementação dos direitos previstos no ECA

Postado em 12/07/2021

31 anos já se passaram desde que a Lei 8.069, que trata do ECA, foi sancionada. O principal instrumento normativo do país sobre os direitos da criança e do adolescente é reconhecidamente um marco de referência para vários países. Mas, passado tanto tempo, temos o que comemorar? Como colocar em prática ações que de fato concretizem o Artigo 227 da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais à infância e juventude? A sociedade compreende o Estatuto da Criança e do Adolescente ou ele se tornou um instrumento de conflito?

Para marcar a data de criação do ECA, lembrada neste 13 de julho, e refletir sobre várias questões, a Associação Lêda Mascarenhas de Queiroz foi conversar com a promotora de Justiça Rosana Viegas e Carvalho, da Promotoria de Justiça de Defesa da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Distrito Federal e Território (MPDFT). Rosana é sobrinha de “D. Lêda”, falecida em 2010 e que se tornou a grande inspiração para o trabalho desenvolvido pela Associação desde 2014. 

Nesta entrevista, concedida à jornalista Sandra Perruci, a promotora Rosana Viegas aborda o descompasso entre a lei, super avançada, e as práticas para a sua aplicação. “Muitas vezes atuamos de forma autoritária, solitária e desarticulada, e ainda desprezando a opinião e as necessidades da criança e do adolescente”. Confira mais abaixo.

A cada ano, quando celebramos a implantação do ECA, voltam ao debate questões que envolvem sua aplicação prática. Podemos dizer que, mesmo representando um marco para os direitos de crianças e adolescentes, o ECA ainda carece de uma rede de proteção eficiente e compreensão da própria sociedade?

ROSANA VIEGAS - O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente constitui um marco legal revolucionário, por abraçar a doutrina da proteção integral, reconhecendo a criança como sujeito de direitos, garantindo-lhe todos os direitos fundamentais individuais e sociais, levando em conta sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Ela se contrapõe à doutrina então vigente, conhecida como a doutrina da situação irregular, focada apenas no binômio abandono-delinquência. A nova lei vem e desloca o eixo da centralização federal e do juiz (a quem cabia executar toda e qualquer medida referente a “menores” em situação irregular) para a construção de um modelo universal, participativo e democrático no qual família, sociedade e o estado são partícipes e co-gestores do sistema de garantia de direitos. 

Institui, no art. 86, a política de atendimento, formada por um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, estabelecendo as linhas de ação e as diretrizes dessa política de atendimento, e estabelece a integração operacional dos órgãos para agilizar a proteção de crianças em situação de vulnerabilidade social ou a aplicação de medidas socioeducativas para adolescentes em situação de conflito com a lei. Os desafios para a atuação em rede são inúmeros: primeiro, os atores devem reconhecer a criança efetivamente como sujeito de direitos, despindo-se das práticas arraigadas de ver na criança um problema e não um ser, sujeito de direitos em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Isso não é apenas um discurso, é uma prática nova, um novo olhar, que muda muito concretamente a forma de atuar; segundo, os atores devem conhecer as linhas, diretrizes, e normas técnicas da política de atendimento, o que demanda formação continuada e constante aperfeiçoamento; terceiro, pressupõe atuação transversal, horizontal e articulada. Isso significa que os atores devem conversar entre si, despindo-se de suas capas e de seus pedestais para atuar coletivamente. É um enorme desafio.

Esses desafios têm gerado dificuldades para a rede funcionar?

ROSANA VIEGAS - Eu acredito que, de fato, existe um descompasso entre a lei, super avançada, e as práticas para a sua aplicação, em parte, por falta de recursos e de vontade política para implementação dos direitos previstos na Lei, e em outra parte, mas não menos importante, porque a rede atua mal ou de forma deficitária. E não podemos esquecer que a tal “rede” somos nós mesmos (não o Ministério, não o Juizado, não o Caps, como entes separados e impessoalizados). Muitas vezes atuamos de forma autoritária, solitária e desarticulada, e ainda desprezando a opinião e as necessidades da criança e do adolescente. Outras vezes erramos por falta de conhecimento técnico, por falta de especialização e formação continuada. Refiro-me a situações em que poderíamos proteger mais e atuar melhor se não fosse a desarticulação, o isolamento e algum despreparo dos membros da rede de proteção. À deficiência da rede, acresce a escassez de recursos em razão do crônico descumprimento do princípio da prioridade absoluta, previsto no artigo 4º do ECA, o que evidentemente impacta de forma negativa na construção da rede de proteção da infância e juventude, criando ciclos que se perpetuam.

Ano passado, quando da comemoração dos 30 anos do ECA, a ministra Damares Alves chegou a dizer que "o atual governo entendeu que crianças e adolescentes são prioridade absoluta”. O Estado de fato compreende seu papel e atua de maneira prática na melhoria da educação, na redução dos números sobre violência infantil, na rede protetiva?

ROSANA VIEGAS - O direito das crianças e adolescentes é historicamente negligenciado pelos governos no país. E nos últimos tempos temos visto uma série de ataques a equipamentos e a políticas públicas até então consolidadas na área da Infância e juventude, sem precedentes desde a redemocratização. Vou dar alguns exemplos.

Um deles é o desmonte e não-funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA, instância máxima de formulação, deliberação e controle na formulação das políticas públicas para a infância e adolescência na esfera federal.

Também destaco a invasão da competência do CONANDA pelo CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) ao editar resolução que desconsidera a Política Nacional de Atenção à Saúde Mental e ao Uso de Álcool e Drogas, e permite a internação de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas, com o concomitante aumento do financiamento público dessas instituições privadas e enfraquecimento da Rede de Atenção Psicossocial e dos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Mencione-se que  as comunidades terapêuticas, além de ameaçarem a laicidade do Estado, porque geridas por grupos religiosos, ameaçam a dignidade e a integridade física dos usuários, por reiteradas práticas de maus tratos, torturas, prisões,  acorrentamentos e toda sorte de abusos, como restou comprovado no Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, produzido em conjunto  pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Ministério Público Federal e pelo  Mecanismo de Combate à Tortura.

Outro exemplo importante diz respeito aos recursos. Em 2020 tivemos o menor orçamento para a educação básica dos últimos 11 anos, e uma completa ausência de coordenação das políticas públicas educacionais voltadas para reduzir os prejuízos decorrentes da necessidade de isolamento social imposto pela emergência sanitária da pandemia do COVID 19, e, como resultado, índices alarmantes de evasão escolar e de insegurança alimentar que afetam as crianças brasileiras.

E não podemos esquecer também da tentativa de implantar o Homeschooling no país, em violação ao direito de convivência comunitária garantido pela Constituição, e a despeito de o governo ter conhecimento de que o ensino domiciliar aumenta a vulnerabilidade das crianças e dos adolescentes, podendo expô-las a abusos sexuais e a maus tratos físicos e psicológicos. Pois é sabido por todos que a maioria dessas violações ocorre no ambiente doméstico, e a porta para revelação dessas violências, a escola, estará fechada para a criança em homeschooling.

Esses poucos exemplos, entre inúmeras outras ações de desmonte das políticas públicas, ataques esses impulsionadas sobretudo pela chamada “pauta ideológica”, com todo respeito, demonstram que o direito infantojuvenil está longe de ser prioridade para o governo atual.

Mas também se percebe que o ECA ainda sofre duras críticas de uma parcela da sociedade e de segmentos da classe política. Trata-se de desinformação? Na sua opinião é necessário proceder uma atualização no aspecto jurídico diante dos novos tempos?

ROSANA VIEGAS - São constantes as propostas legislativas de redução da maioridade penal e de retrocesso de direitos contra os quais os incansáveis militantes da infância e da juventude se deparam no dia a dia. Mas, apesar dessas ameaças, o que vemos na prática é o progressivo reconhecimento de direitos e de condutas antes normalizadas, que passam a ser percebidas como violadoras dos direitos da infância e da juventude. Como exemplo, cito o reconhecimento do trabalho doméstico, como uma das piores formas de trabalho infantil, e a revogação do art. 248 do Estatuto, que admitia a guarda para fins de prestação de serviços domésticos. Outro exemplo é o reconhecimento do direito das crianças de serem cuidadas e educadas sem o uso de castigos físicos, advindo com a Lei 13.010, de 26 de junho de 2014. Temos visto também modificações no ECA que promoveram importante aperfeiçoamento das políticas públicas, tais como a lei que implementa serviços, programas e ações voltadas para a garantia da convivência familiar e comunitária, a Lei de criação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Sinase, e o Marco Legal da Primeira Infância.  Diante desse quadro, eu não vejo necessidade de atualização jurídica para adequação dos novos tempos.

As críticas aos Direitos das Crianças e Adolescentes se devem, em parte, à desinformação, por não se compreender que problemas sociais não se resolvem com responsabilização criminal e encarceramento em massa. Por não se compreender a criança e o adolescente como um ser em formação sujeito de direitos, tal qual adultos. Devem-se também em razão de uma cultura escravocrata, patriarcal e historicamente violadora dos direitos dos negros e das minorias, que acaba por criminalizar a infância pobre e vulnerável. Decorrem de uma cultura que não desenvolveu a alteridade, sendo incapaz de reconhecer que, como nos ensina o professor Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza, e o direito de ser diferentes, quando a nossa igualdade nos descaracteriza”.

 

  • Compete ao poder público<br> garantir a dignidade da<br> pessoa com deficiência ao<br> longo de toda a vida.
  • É proibido qualquer trabalho<br> a menores de 16 anos de<br> idade, salvo na condição de aprendiz.
  • A criança e o adolescente têm<br> assegurado acesso à escola pública<br> e gratuita próxima de sua residência.
  • Toda criança tem direito a<br> ser protegida contra o<br> abandono e a exploração<br> no trabalho.
  • É vedada a discriminação do idoso<br> nos planos de saúde pela<br> cobrança de valores diferenciados<br> em razão da idade.
  • A violência doméstica e familiar<br> contra a mulher constitui uma das<br> formas de violação dos direitos humanos.
  • Ao idoso internado ou em<br> observação é assegurado o<br> direito a acompanhante.
  • A Lei nº 11.438/06 estabelece<br> benefícios fiscais para estímulo<br> ao desenvolvimento do esporte.
  • É obrigação do Estado<br> garantir à pessoa idosa a<br> proteção à vida e à saúde.
  • O Estado protegerá as manifestações<br> das culturas populares, indígenas<br> e afro-brasileiras.
  • É vedada a aplicação nos casos<br> de violência doméstica contra<br> a mulher penas de cesta básica.
  • O Poder Público apoiará a<br> criação de universidade aberta<br> para as pessoas idosas.
  • O adotante precisa ser pelo<br> menos dezesseis anos mais<br> velho do que o adotando.

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